quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A Poesia E O Espírito Da Palavra: Reflexões Teológicas A Partir De Meishu-Sama


Heloisa Helena Guedes Terror [1]
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar algumas considerações sobre a poesia, em particular a poesia japonesa, a partir do conceito de “espírito da palavra”, fundamentando-se em Mei-shu-Sama, fundador da Igreja Messiânica Mundial. O texto parte dos fundamentos de seu pensamento para apresentar este conceito, o kototama, e sua força de atuação na linguagem humana e, em especial, na poesia. Meishu-Sama discute o papel da palavra na criação poéti-ca como forma de influir sobre o Cosmos, na medida em que pode contribuir para a harmo-nia ou a desarmonia do Universo, a partir do espírito, ou seja, do sentimento que esta pala-vra carrega.
PALAVRAS–CHAVE: Espírito da palavra, pensamento, poesia, papel da Arte.

The Poetics And The Spirit Of The Word: Theological Reflexions From Meishu-Sama

ABSTRACT
This paper has the purpose of showing some considerations about poetics, especially Japa-nese’s, departing from the concept of the spirit of the word. It takes Meishu-Sama’s thought to show that concept, the kototama, and its acting power in human language, particularly in poetics. Meishu-Sama, the beginner of World Messianic Church, discuss the word’s role in poetics creation as a mean of to have an influence on the Cosmos, in so far as it can cooper-ate for harmony or disharmony of the Universe, through the spirit, namely, the feeling that each word carries on itself.
KEY-WORDS: Word’s spirit, thought, poetics, Art’s role.

INTRODUÇÃO

“Poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito, diante das coisas. Como de alguém que conhe-cesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condi-ções, mas de nada mais se recordando”.
Fernando Pessoa [2]
O que é poesia?
Fernando Pessoa (1888-1935), o grande poeta português, tem mais a nos falar sobre poesia, definindo-a como “a emoção expressa em ritmo, através do pensamento” (PESSOA, 1972, p.261). E considera como elementos essenciais desta arte a presença de Sentimento, Cor e Forma.
Já Matsuo Bashô (1644-1694), o maior expoente do haiku, estilo característico da poesia japonesa, nos lembra a importância do olhar do poeta sobre o momento presente, para que o poema possa “buscar o eterno” e “desprezar o banal; deve surgir quase pronto, como num repente, num ímpeto, num instante” (DOURADO, 2003).
Difícil de ser definida, a poesia talvez possa ser entendida como a expressão da alma, dos sentimentos que o mundo faz brotar no ser humano a cada instante de sua vida: senti-mentos de delicadeza ou de dureza, de afeto ou de repulsa, de medo ou de atração. O poeta é aquele que consegue dar forma à atmosfera das almas dos homens, das suas vontades e pen-samentos, e cristalizá-la no mundo sensível através do “espírito” de seus versos, ou seja, da energia de suas palavras.
Essa idéia de que as palavras possuem energia, poder ou força é muito antiga entre as culturas, e aparece associada a ritos religiosos praticados na invocação de bênçãos e prospe-ridade para a terra. Esta utilização estava possivelmente ligada à crença na força espiritual das palavras para atrair situações de sorte ou provocar infortúnios. No caso da cultura japo-nesa, esta crença se faz presente desde os mais antigos períodos da história do país, e foi documentada por livros como o Nihonshoki (TOMITA, 2006, p.306), o segundo mais antigo sobre a história do Japão, compilado no ano de 720. Na tradição judaico-cristã tam-bém encontramos referência a esta idéia no trecho bíblico:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e nada do que foi feito, foi feito sem ele (João, I, 1-3).
Para Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica Mundial (IMM), religião surgida no Japão em 1935 e trazida para o Brasil em 1955, podemos identificar nesta citação, prin-cipalmente na expressão “todas as coisas foram feitas por ele”, a ação do “espírito da pala-vra” que, na sua essência, é Deus.
Para entender melhor este conceito, vamos primeiro tentar conhecer um pouco mais sobre o pensamento de Meishu-Sama, nome religioso de Mokiti Okada, que significa “Se-nhor da Luz”.

OS ENSINAMENTOS

A essência que permeia todo o pensamento de Meishu-Sama é a trilogia Verdade, Bem e Belo.
A Verdade é a vida em perfeita harmonia com as Leis da Natureza, é o próprio estado natural das coisas. Portanto, as doenças, a violência social, as crises financeiras etc. repre-sentam distorções da Verdade.
O Bem se manifesta através de pensamentos, sentimentos e atitudes altruístas, que e-manam amor, misericórdia e desejo de justiça social; num sentido mais amplo, expressa um profundo sentimento de dedicação a toda a humanidade.
O Belo se expressa através da Natureza e da Arte. A Beleza na Arte é a manifestação da sensibilidade do artista na expressão de seu sentimento através da harmonia das formas ou dos sons. O contato do homem com o Belo eleva seu nível espiritual, na medida em que revela seus sentimentos de Verdade e de Bem, aproximando-o da essência da vida, desper-tando a partícula divina que nele existe.
Para ele, a Arte tem uma missão no mundo. Esta missão consiste em elevar o nível es-piritual do homem através do seu contato com as manifestações artísticas de nível elevado – “uma Arte que, deleitando a pessoa, eleve o seu sentimento”. É assim que ele vê o Belo co-mo uma das formas de Salvação.

O ESPÍRITO DA PALAVRA

Inestimável
É o som inebriado de Verdade!
Atinge e limpa todos os cantos da Terra. [3]
Definir o processo da linguagem como uma relação inseparável entre o pensamento e a palavra não é propriamente uma novidade. Vários são os teóricos que falam disto. Vy-gotsky, em “Pensamento e Linguagem”, trata da indissociabilidade entre a constituição do pensamento e a verbalização deste pelos indivíduos, estabelecendo mesmo uma junção entre pensamento e linguagem:
O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensa-mento e da linguagem, que fica difícil dizer se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da Psicologia, o significado de cada palavra é uma gene-ralização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inega-velmente atos do pensamento, podemos considerar o significado como um fenô-meno do pensamento. Daí não decorre, entretanto, que o significado pertença formalmente a duas esferas diferentes da vida psíquica. O significado das pala-vras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que o pensamento ga-nha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida que esta é li-gada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento (VI-GOTSKY, 1988).
Mas Meishu-Sama traz uma nova perspectiva na abordagem deste assunto, na medida em que acrescenta um novo elemento a esse “amálgama”: o kototama, o espírito da palavra.
O Universo e os seres que nele vivem manifestam-se sob dois aspectos: o yang, re-presentado pelo vertical, e o yin, pelo horizontal. No ser humano, a verticalidade cor-responde ao espírito e a horizontalidade ao corpo. A união espírito-matéria gera a energia vital, essência da vida. O mesmo princípio está presente no vocábulo kototama [4] , em que koto (palavra) contém a partícula to (parar), e tama significa “espírito”. Kototama quer dizer, na verdade, “espírito que mora, permanece na palavra” (MEISHU-SAMA, 2003b, p.143), portanto, a força, a energia da palavra.
Segundo Meishu-Sama, a palavra tem origem no pensamento, que se manifesta por seu intermédio, expressando a vontade de quem fala ou escreve. Assim, ele aponta três elementos neste processo: a vontade, o pensamento e a palavra propriamente dita, ou seja, o pensamento em ação.
Ele acrescenta que “na realização do pensamento ocorre o discernimento do correto e do incorreto, do bem e do mal” (MEISHU-SAMA, 2005, vol. 4, p.53-54) , ou seja, a atua-ção da sabedoria. Esta vai se transmitir à palavra através do que ele chama de “espírito da palavra”, o kototama, impregnando-a de força sintonizada com o Bem ou com o Mal. Esta força exerce, então, grande influência no mundo pelo fato de os sons e as letras das palavras emitirem vibrações que contribuem, de forma decisiva, para a harmonia ou a desarmonia do universo.
Portanto, a emissão de um kototama harmonioso, bom e belo depende essencialmente da alma de quem o transmite; quanto mais próximo o pensamento estiver do Bem, maior será a força positiva de transformação que esta palavra exercerá no ambiente e nas pessoas que a receberem; “dessa forma, o mundo do bem ou do mal, da alegria ou da tristeza, do certo ou do errado depende do kototama proferido pelo ser humano” (MEISHU-SAMA, 2005b, p.241).
Em seu ensinamento intitulado “A força da Verdade e a purificação”, ele identifica es-sa dimensão como “reino do espírito das palavras” e esclarece que nele ecoam 75 fonemas espirituais, alguns deles inaudíveis para o ser humano. A forma como eles são dispostos, a partir das palavras utilizadas, os aproximam do Bem ou do Mal, o que, por sua vez, aumenta ou diminui as impurezas do ambiente. O espírito das palavras ligadas ao Bem são as que estão de acordo com a Verdade; “elas ressoam agradavelmente aos ouvidos porque pene-tram até a alma, núcleo da consciência humana” (FMO, 1997, p. 23-24).
A partir dessa perspectiva pode-se entender a importância atribuída às orações e man-tras pelas religiões orientais: são emissões sonoras que harmonizam os ambientes e as pes-soas, em conseqüência da pureza que deixam fluir.
Seguindo o mesmo princípio, as palavras escritas carregam a energia e a vibração do au-tor, transmitindo ao leitor a sua sintonia espiritual. Meishu-Sama explica que "os textos refle-tem, através das letras, o pensamento da pessoa que os escreveu, o qual é transmitido para o pensamento de quem os lê”. No caso de textos sagrados, ele completa:
Conseqüentemente tudo aquilo que escrevi guiado pela Vontade Divina irradia a Luz de Deus para o leitor. (...) Assim, quanto mais a pessoa lê, mais aprofunda sua fé, e mais purificado vai ficando o seu espírito. [5]
A partir deste raciocínio, podemos concluir que* a literatura pode se constituir em um instrumento para a formação de um mundo melhor, assim como a Arte em geral. Nas palavras de Meishu-Sama, “o *Bem é o pensamento gerado pela Verdade e o Belo é a forma criada pelo Bem ”.
Em seus ensinamentos ele estabelece o Belo como uma das colunas de Salvação da hu-manidade, atribuindo à Arte a missão de “enobrecer os sentimentos do homem e enriquecer-lhe a vida, proporcionando-lhe alegria e sentido” (MEISHU-SAMA, 2005a, vol. 5, p. 54).
A felicidade do homem se realiza na medida de sua salvação, ou seja, quanto mais alto for o seu nível espiritual, maior será o seu grau de felicidade, aqui mesmo nesta vida. Por isso Meishu-Sama utiliza a expressão Paraíso Terrestre para indicar o Mundo Ideal. E para ele, este será o Mundo da Arte, porque esta, na sua essência, satisfaz as condições da Verdade, do Bem e do Belo. E sua valorização e divulgação precisam ser vistas como um dos caminhos capazes de conduzir o ser humano à felicidade.
O objetivo da Fé é polir a alma e purificar os sentimentos. Existem três manei-ras para conseguirmos isso: pelo sofrimento oriundo não só de abstinência ou penitências, mas também de danos e catástrofes; pela soma de méritos e virtudes e pela elevação da alma por influência da arte de alto nível. Dentre elas, o ca-minho mais rápido é este último. E não existe nada melhor, pois nossa alma vai sendo polida imperceptível e prazerosamente “*(MEISHU-SAMA, 2005a, vol.5, p.86).

A POESIA

Meishu-Sama sempre mostrou uma afinidade muito grande com a Arte, tendo se dedi-cado à caligrafia, à pintura, à ikebana e também à poesia.
No decorrer de sua vida, compôs cerca de cinco mil e quinhentos poemas, tendo sido talvez a sua forma de expressão preferida para retratar o cotidiano; a maioria deles faz parte de seu diário, todo ele em formato de poesia, um documento muito precioso para seus se-guidores porque revela seus dois lados, o humano e o divino. Ele não se considerava um poeta; utilizava a poesia como forma de expressão por considerá-la um veículo eficaz para transmitir a essência do seu pensamento, ao mesmo tempo em que se constituía na manifes-tação do Belo, polindo a alma do leitor. Ele confirma isto em um de seus poemas:
A poderosa
Força do kototama nasce da pureza.
Vale, pois, a pena polir sempre a nossa alma. [6]
Abriremos aqui um espaço para comentar brevemente a questão da tradução literária e suas implicações para a compreensão do pensamento do autor e de seu estilo, já que os textos de Meishu-Sama consistem em traduções, e que nossa questão central é a força, a energia do autor que impregna as palavras por ele utilizadas.
Em que proporção os extremos da tradução literal e da interpretativa alteram o origi-nal? Segundo Neide Nagae (2006, p.116), a intelecção é diferente da tradução, e esta apre-senta um nível de dificuldade maior, porque muitas vezes faltam as palavras exatas para expressar o que o autor disse: “é um trabalho de transposição de elementos culturais de um país para o país de língua de chegada”, e no caso da língua japonesa para a portuguesa, mui-tas vezes a dificuldade da equivalência é tão definitiva que o tradutor acaba por tomar o termo de empréstimo.
No caso específico de tradução de poemas, vamos ouvir Fernando Pessoa, que além de um grande poeta, mostrou-se um “espírito indagativo, atilado e dialético”, demonstrando suas preocupações estético-filosóficas em obras em prosa como “Idéias Estéticas”. É desta obra a sua definição de que um poema “é uma idéia transformada em emoção, comunicada a outrem por meio de um ritmo”, acrescentando que este ritmo é duplo em um só: um verbal ou musical e outro visual ou imagem. A tradução de um poema deve ser feita buscando a fidelidade absoluta à “idéia ou emoção que constitui o poema” e ao “ritmo verbal em que essa idéia ou emoção está expressa”, o que se constitui em um aspecto a ser cuidadosamente observado e ambicionado pelo tradutor.
E nos textos sagrados? É possível conservar o “espírito das palavras” do texto origi-nal? Meishu-Sama introduziu duas orações de base na doutrina messiânica; a primeira delas chama-se Amatsu Norito e data de uma época que não se pode precisar, mas é preservada como documento histórico a partir do início da Era Heian (794-1192), Sua linguagem é muito antiga e sua compreensão tornou-se difícil tanto para os pesquisadores quanto para as pessoas em geral. Meishu-Sama deixou registrada uma justificativa para sua adoção na li-turgia da IMM: “suas palavras possuem um espírito muito elevado e uma ação intensa, ten-do o poder de purificar o Céu e a Terra”. Ela é entoada em japonês e uma das razões para isto deve estar ligada à dificuldade de compreensão do seu significado, como se expôs acima.
Já a segunda oração acima referida, intitulada Zenguen Sandji, foi composta por Meishu-Sama e entoada pela primeira vez em 1934. Seu conteúdo expressa a concretização do mundo ideal, denominado por ele de Paraíso Terrestre, e “ao entoá-la com vigor, os fiéis fazem eclodir os fonemas do espírito da palavra, que ressoarão por todo o Universo”. A questão do espírito da palavra está fortemente presente no teor dos vocábulos utilizados e também pelo fato de que ela é sempre entoada em japonês, embora sua tradução seja dispo-nibilizada aos fiéis. O que se percebe é a preocupação com a manutenção da força da pala-vra a partir da língua original, que possivelmente se alteraria com a tradução.
Fica aqui uma questão que deve ser pensada e discutida mais amplamente, porém não neste momento, por não caber no objetivo do presente trabalho; mas, com certeza, em poste-rior estudo, não se poderá desconsiderar a importância do grau de conhecimento e de envol-vimento do tradutor com o autor e com o assunto dos textos a serem traduzidos, para que se consiga captar este espírito e expressá-lo harmonicamente na tradução.
Os poemas de Meishu-Sama são composições em que ele fala da Natureza, dos senti-mentos e também do sagrado. Alguns desses poemas são hoje entoados como salmos, por ocasião dos Cultos; vários deles expressam seu sentimento em épocas de sofrimento; outros, suas emoções, como a alegria e a tristeza, os aborrecimentos e os desejos, comuns a qual-quer ser humano.
Já passei por várias atribulações
Houve momentos em que me vi sob águas escaldantes
E, outras vezes, sobre tênues camadas de gelo. [7]
Diferentes formas da poesia japonesa foram utilizadas em suas composições. Vale a pena trazer para o presente texto algumas informações e considerações a respeito destas formas poéticas, que normalmente não fazem parte do nosso universo literário.
Uma delas é o estilo waka, *denominação genérica dada à poesia encontrada nos primeiros escritos japoneses datados do século VII. Uma das formas de *waka é o poema tanka, composto de 31 sílabas poéticas (versos de 5-7/ 5-7/ 7 sílabas), que alcançou seu auge entre os séculos X e XVI, na vida social dos aristocratas. Literalmente tanka signifi-ca “poema curto”, em oposição a choka, *“poema longo”, outra variação poética do estilo *waka [8]
A mais antiga coletânea dessa modalidade de poesia japonesa foi compilada no século VIII (743 – 759). Recebeu o título de Man’ yoshu (Miríades de Folhas), composta de 4.516 poemas em 20 volumes, escritos por mais de 400 praticantes, do imperador ao simples camponês. Na interpretação de Meishu-Sama, esta obra revela uma grande verticalidade, ou seja, alta espiritualidade, pela temática lírica refinada e pela expressão de sentimentos no-bres e de caráter religioso, ou seja, de um kototama altamente benéfico. No capítulo V desta coletânea encontramos o seguinte poema:
Foi dito e transmitido, de geração a geração
Que o Yamato [9] , a terra amada por Deus,
é o país onde prospera o espírito da palavra [10]
Ainda hoje a família imperial realiza, no início do ano, uma reunião cerimoniosa, de-nominada Shin-nen-uta gyotai ou Uta-gyokai – hajime, em que o imperador, a impera-triz, os príncipes e as princesas apresentam seus tankas. O povo participa enviando tankas feitos a partir do tema previamente anunciado pelo imperador. Para ilustrar a im-portância do tanka na história do Japão, lembremos que o Hino Nacional, o Kimigayo, é um poema tanka [11]
A grande maioria dos poemas compostos por Meishu-Sama segue esta forma, o tanka, que ele trata, genericamente, por waka.
Quando foi assegurada a liberdade religiosa no Japão, através da Constituição promul-gada em 1947, e as atividades da IMM puderam ser desenvolvidas oficialmente, Meishu-Sama publicou a "Coletânea de Salmos", editada em julho de 1948, contendo poemas waka que passaram a ser entoados nos cultos em forma de salmos. No prefácio, ele comenta:
A poesia ‘waka’ tem um poder misterioso. Consegue-se expressar em apenas trinta e uma sílabas o que não se consegue dizer com milhares de palavras. E o seu poder de mover as pessoas, então, é inimaginável. O presente livro reúne poemas que eu próprio escolhi e que, entre outros temas, cantam o sentimento, a moral e a virtude, expressando aquilo que eu sentia na ocasião em que os escre-vi. Como não sou poeta, compus a maioria sem pensar muito, exprimindo-me com naturalidade. Meu único cuidado foi torná-los de fácil compreensão, man-tendo a elegância e a beleza do espírito das palavras. [12]
Portanto, os poemas compostos em forma de waka são um ponto de apoio da fé para os seus seguidores e, ao mesmo tempo, dão uma imagem viva e real de Meishu-Sama. Os dois poemas que se seguem apresentam uma síntese de seu pensamento, a trilogia Verdade – Bem – Belo e o altruísmo:
A Verdade é o caminho, o Bem é a ação,
o Belo é o sentimento. Desejo ardentemente
que todos os cultivem [13]
É possuindo um caloroso
amor pelo homem que se ama a Deus,
a ponto de se lhe entregar a vida [14]
O poema abaixo consta da coletânea Yama to Mizu (Montanha e Água), publicada em 1949, e nos fala da sensibilidade de Meishu-Sama na busca da essência da natureza de forma simples, sutil e artística:
A flor de lilás contempla
Suas largas folhas caídas,
Rolando, ao sabor do vento. [15]
A estrofe superior do poema waka deu origem ao haikai, poema de 17 sílabas poéticas, distribuídas em 5-7-5 sílabas, que possuía, a princípio, caráter satírico e humorísti-co. Posteriormente, esta forma foi perdendo o tom cômico até transformar-se no atual haiku, registrado a partir do século XVII, e que no Brasil é conhecido como haicai.
O haiku é uma forma de poesia que retoma a harmonia da filosofia e do simbolismo taoístas, que expressam suas idéias na forma de mitos, paradoxos e imagens poéticas, na tentativa de transcender a limitação imposta pela linguagem usual.
Da mesma maneira que a meditação, os versos do haiku nos fazem voltar a atenção e a consciência para o momento presente. Na meditação tradicional, sentada, a atenção está na respiração. No haiku ela volta-se para a natureza, enquanto que o mundo do poema waka são os sentimentos humanos. Trata-se, portanto, de meditação na ação. Seu formato de pe-queno poema relaciona-se com a busca da essência do momento expressa de forma compacta, revivendo ou saboreando as impressões rápidas e fugazes do instante cristalizado e valorizan-do as cores, a natureza e o elemento surpresa. Estes elementos podem ser encontrados neste poema de Bashô, que Meishu-Sama considera um dos melhores:
O canto das cigarras
penetra no silêncio
e nas rochas. [16]
Meishu-Sama aplica a esse poema a expressão “o saber das coisas”, mono o shiru em japonês, que ele define como “experimentar ilimitadamente tudo o que existe no mundo, penetrar, captar a essência das coisas e exprimi-la de alguma forma”. Ele considera que poe-mas como esse aprimoram o gosto estético de quem lê e despertam seus bons sentimentos.
Na sociedade japonesa, muito da vida prática do povo é mantido de acordo com os ritmos maiores da natureza, chamados “mandamentos sazonais”, um conjunto de regras e regulamentos que detalham quais ações devem ser realizadas em determinadas épocas do ano. Freqüentemente, as datas de entrada e saída das estações configuravam-se mais impor-tantes até do que a própria temperatura na decisão do momento correto de se acender o for-no (NEVILLE, 2005, p. 88-89). Por isso, antigamente, a cada mudança de estação, mudava-se o jogo de pratos que era servido à mesa, as pinturas e tecidos que faziam parte da decora-ção da casa, os quimonos das mulheres, os arranjos florais. As estações, com sua temperatu-ra, pássaros, cores e flores característicos entravam pelas grandes janelas e portas de correr da casa japonesa. O que estava dentro integrava-se ao que estava fora, no jardim. Foi para testemunhar isto que o haiku surgiu por volta do séc XV.
O haiku apresenta algumas variações. Uma delas é o kanku, uma composição assim descrita no livro “Luz do Oriente”:
Trata-se de um jogo de palavras onde só é determinado o primeiro verso, e as pessoas têm de completar os dois seguintes, para competir nas habilidades de agilidade mental e humor. Existe, ainda, o toku, no qual se determina o último verso. Oficialmente, esses dois tipos de poemas são denominados kantoku; entre-tanto, parece que, popularmente, quando se fala em kanku, subentendem-se as duas formas. [17]
Meishu-Sama criou, em setembro de 1930, a “Associação Ten’nin*”, que promo-via sessões de poesia *kanku humorística, dirigidas por ele mesmo. O objetivo era de criar e apresentar composições que, expressando a situação social da época de forma bastante irônica, ou com um pouco de humor, fizessem as pessoas se desligar por completo do ambi-ente conturbado da sociedade e encher de gargalhadas as reuniões. . Dessa forma, a “Asso-ciação Ten’nin*” era a melhor expressão do temperamento alegre de Meishu-Sama. Sele-cionou algumas das composições desta época e publicou-as com o nome de *Warai no izu-mi, em português, “Fonte do riso”, vinte anos depois, em janeiro de 1951. No prefácio, ele esclarece o objetivo da publicação:
O que será que a sociedade japonesa da atualidade, ou seja, os japoneses estão realmente necessitando? As pessoas conscientes poderão dizer que é o riso.
Podemos dizer que a nossa sociedade encontra-se num estado infernal, uma vez que o povo sofre com impostos, falta de alimento, alto preço das mercadorias, dificuldades financeiras, aumento de crimes, doenças incontáveis, etc.
(...)
É melhor esquecer, com uma explosão de risadas, essa atmosfera sombria e tris-te. A publicação do presente livro tem esse objetivo. Portanto, senhores leitores, leiam uma vez e riam bastante! Leiam três vezes e façam uma pândega! Riam, riam! Riam muito e construam o Paraíso! Pois dizem que as risadas são as flores do Paraíso! [18]
Podemos observar seu temperamento brincalhão neste poema:
Tencionava compor
Um poema sobre a geada.
Dorminhoco que sou,
Quando acordei,
Nem vestígios encontrei. [19]
Os dois estilos da poesia waka, tanto o kanku, principalmente na variação humorística, quanto o tanka foram muito utilizados por Meishu-Sama como instrumentos de expansão na sua obra religiosa. O primeiro para trazer à vida das pessoas a alegria e a espontaneidade que o cotidiano às vezes subtraia, principalmente no Japão dos tempos da Segunda Guerra Mundial; o segundo porque, além de possuir, na sua opinião, um grande poder de “mover as pessoas”, revela a intimidade e a afinidade que Meishu-Sama possuía com sua forma, mostrando-se um veículo muito agradável e eficaz para registrar seu pensamento e suas experiências.
Além desse caráter utilitário da poesia dentro de sua obra religiosa, não se deve esquecer de que, na sua concepção, a Arte, de forma geral, incluindo aí a poesia, é o caminho mais rá-pido para se polir a alma. É o que se chamaria, em japonês, de do, ou seja, o caminho espi-ritual, e que Meishu-Sama chama de dori, o caminho perfeito, que, em última instância, é Deus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A palavra, tanto falada como escrita, se constitui para Meishu-Sama, como foi visto, na ação concretizadora da vontade e do pensamento. Mas seu enfoque principal, ao desenvolver este conceito, é introduzir um outro elemento: o espírito da palavra.
Este conceito está no centro de sua doutrina, na medida em que a palavra é o meio atra-vés do qual o ser humano se relaciona com o Cosmos. Ela pode se constituir, ou não, na mani-festação da Verdade e do Bem, pilares da harmonia do Universo, e adquirir a forma do Belo, cumprindo assim a missão de contribuir para o equilíbrio do ambiente em que vivemos.
Dentre as formas de Arte, focalizamos aqui a poesia, bastante utilizada por Meishu-Sama como expressão do Belo, através de composições tanto de temática religiosa como coti-diana, passando inclusive pela poesia humorística, estilo que recebe dele um olhar no mínimo inusitado, se pensarmos na importância e finalidade a ela atribuídas por um líder religioso. Mas isto pode estar nos revelando o lado humano de quem sabe como é difícil praticar o Bem num mundo nem sempre tão bom.
Ficou aqui registrada a questão das dificuldades implícitas na tradução literária, e em particular da poesia, principalmente no que diz respeito à fidelidade de sentimentos, emoções e do “espírito” dos versos, em especial de textos sagrados.
Existem outros aspectos que poderiam ser analisados a partir deste tema nas obras de Meishu-Sama, aplicando-se o conceito do “espírito da palavra” às caligrafias ou a textos em prosa. O que se apresentou nesse trabalho é apenas parte das possibilidades de abordagem deste assunto à luz do seu pensamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOURADO, Gustavo. Haicai alma da poesia*.* JBN – Jornal das Boas Novas. São Pau-lo: FMO, janeiro 2003, nº 18.
FUNDAÇÃO MOKITI OKADA (1997), Orações, hinos e salmos. São Paulo.
MEISHU-SAMA. (1982) Luz do Oriente. São Paulo: Fundação Mokiti Okada (FMO), vol. 1
______. (1983) Luz do Oriente. São Paulo: FMO, vol. 3.
______. (1995) O Pão Nosso de cada dia. São Paulo: FMO.
______. (2003a) Coletânea de Salmos. São Paulo: Lux Oriens
______. (2003b), Evangelho do Céu. São Paulo: Lux Oriens, vol. 3.
______. (2005a), Coletânea Alicerce do Paraíso. São Paulo: FMO, vol. 1 a 5.
______. (2005b), Orações, São Paulo, Lux Oriens.
NAGAE, Neide. Tradução: meio e fim In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ES-TUDOS JAPONESES NO BRASIL, 4, 2006, São Paulo. Anais do XVII Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa. São Paulo: USP, 2006 p. 111-120.
NEVILLE, Robert Cummings. (2005), A Condição Humana – um tema para religiões comparadas. São Paulo: Paulus.
PESSOA, Fernando. (1972) Idéias Estéticas in Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar.
TOMITA, Andréa Gomes Santiago. O poder das palavras de Yamato: a noção de kotoda-ma em religiões nipo-brasileiras In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS JAPONESES NO BRASIL, 4, 2006, São Paulo. Anais do XVII Encontro Nacional de Pro-fessores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa. São Paulo: USP, 2006 p. 305-311.
VYGOTSKY, L.S. (1988) Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes.



[1]Mestranda em Ciências da Religião na UMESP.
[2]PESSOA, 1972, p.37.
[3]MEISHU-SAMA, 2003a, p. 66.
[4]ideograma言霎 pode ser lido, em japonês, como kototama, kotodama ou genrei.
[5]MEISHU-SAMA, 1983, p. 165
[6]MEISHU-SAMA, 2005b, p.177
[7]MEISHU-SAMA, 1995, p. 62.
[8]Tan, curto; cho, longo e ka, poema.
[9]Denominação arcaica do Japão.
[10]O autor é Yamanoue-no-Okuti
[11]O hino japonês é o hino nacional mais curto que se conhece, pois possui apenas uma estrofe, que é cantada três vezes. O Kimigayo, como é conhecido, teve a sua origem no ano 905, durante a era Heian, quando foi publicado no primeiro livro de canções japonesas, o Kokinwakashu. A letra do hino originalmente celebrava a longevidade de idosos e autoridades. No ano de 1013 a letra sofreu uma alteração, mas foi na era Meiji, no ano de 1888, que a nação adotou o hino oficialmente e este se tornou uma música de louvor ao imperador, considerado uma figura divina, descendente dos deuses. Depois da Segunda Guerra Mundial o hino transfor-mou-se em uma celebração ao povo japonês. A melodia foi composta por Hiromori Hayashi. A letra do hino é a seguinte: | Kimiga yo wa Chiyo ni yachiyo ni Sazare ishi no Iwao to Nari te Koke no musu made | Que o teu reinado de paz dure bastante! | Que dure por centenas de anos | Até que essa pequena pedra se torne uma rocha maciça. | E os musgos venham cobri-la.
[12]MEISHU-SAMA, 1983, p.157
[13]MEISHU-SAMA, 1995, p.120.
[14]MEISHU-SAMA, 1982, p.268
[15]MEISHU-SAMA, 1983, p.158
[16]MEISHU-SAMA, 2005a vol.3, p.35
[17]MEISHU-SAMA, 1982, p. 289
[18]Prefácio da obra Warai no izumi (Fonte do riso), publicado em 30 de janeiro de 1951.
[19]MEISHU-SAMA, 1982, p.290.